Artigo de opinião: Os povos do mar fizeram sua parte. O governo deixou a canoa virar
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Artigo publicado no portal ((o)eco), assinado por lideranças dos povos do mar e do Instituto Linha D’Água, analisa o saldo da COP30 para os Povos das Águas e do Mar e denuncia a ausência de respostas do governo às suas demandas territoriais históricas.

Foi publicado nesta quarta-feira (03/12), no portal ((o)eco), o artigo “Os povos do mar fizeram sua parte. O governo deixou a canoa virar”, assinado por Josana Pinto (MPP), Carlos Alberto Pinto dos Santos (CONFREM), Andrea Rocha do Espírito Santo (CPP) e Henrique Kefalás (Instituto Linha D'Água). O texto analisa o saldo da COP30 para os Povos das Águas e do Mar e denuncia a ausência de respostas do governo às principais demandas territoriais já apresentadas há anos e reiteradas em Belém.
O artigo mostra como, mesmo com avanços importantes para povos indígenas e quilombolas, as comunidades pesqueiras, ribeirinhas e
das marés seguiram sem o que pedem há anos:
- assinatura do Marco Legal dos Territórios Tradicionais
- criação das novas Resex costeiras e marinhas (Tauá Mirim-MA, Rio Formoso-PE e Itacaré-BA)
- apoio explícito ao PL 131, que reconhece os Territórios Pesqueiros Tradicionais
O artigo denuncia a contradição entre o discurso de justiça climática e a omissão sobre os povos do mar, em um contexto de forte pressão de portos, petróleo, eólicas offshore, especulação imobiliária e retrocessos no licenciamento ambiental. A mensagem é direta: sem território garantido, não existe justiça climática nem futuro para os povos do mar.
Confira abaixo o artigo na íntegra:
Os povos do mar fizeram sua parte. O governo deixou a canoa virar
Quando os povos do mar estendem a mão ao governo, mas o governo deixa a maré levar suas promessas
A COP30 terminou sem que o governo brasileiro entregasse aquilo que povos das águas, do mar e das florestas pediram de forma insistente, legítima e organizada: o decreto do Marco Legal dos Territórios Tradicionais, a criação das novas Resex costeiras e marinhas e o apoio explícito ao PL 131, que reconhece os Territórios Pesqueiros Tradicionais. Enquanto quilombolas e povos indígenas conquistaram avanços importantes – 28 decretos para territórios quilombolas, quatro novas Terras Indígenas e dez declarações de TI – as comunidades costeiras e ribeirinhas saíram da conferência com as mesmas incertezas de sempre. E, diante de um governo que se apresenta como defensor da justiça climática, essa lacuna não é apenas um detalhe: é um sintoma.
A distância entre a Zona Azul e a Zona Verde, tão comentada em Belém, não é apenas geográfica. Ela é política. Na arena oficial da ONU, prevalecem os acordos, as metas e as falas cuidadosamente escritas. Na arena da sociedade civil, prevalecem os territórios reais – aqueles onde grileiros avançam, onde portos e eólicas offshore despejam promessas, onde a especulação imobiliária empurra pescadores para longe das águas. A COP não criou essa distância, mas a expôs de forma quase didática: enquanto chefes de Estado negociavam a sobrevivência global, povos tradicionais pediam, mais uma vez, condições mínimas para existir.
Como disse Josana Pinto, do MPP e do WFFP, “A emergência climática já está mudando nossos rios, nossas marés e nossa vida. Tem comunidade que ficou sem água nem para cozinhar. Não dá mais para dizer que é futuro: é agora, e estamos sozinhos lidando com isso”. É impossível ignorar o simbolismo disso. O governo levou para a COP medidas significativas para indígenas e quilombolas – e isso deve ser reconhecido. Mas também levou silêncio sobre os povos do mar. E silêncio, nesse caso, soa como escolha.
Uma escolha que rompe a reciprocidade, valor profundamente enraizado nos territórios tradicionais. Durante a construção do Pró-Manguezal e do PróCorais, os povos das marés são chamados a validar, endossar e dar legitimidade ao processo; porém, quando o holofote internacional se volta ao Brasil, as demandas territoriais desses mesmos povos submergem, como se não fizessem parte do mesmo país, da mesma política, do mesmo compromisso público.
Para os Povos e Comunidades Tradicionais que dependem das águas e das marés, a não assinatura do Marco Legal é um recado: mais uma vez, seus direitos podem esperar. O problema é que seus territórios não podem. Manguezais, estuários, restingas e zonas costeiras vivem hoje sob uma pressão industrial e especulativa sem precedentes, com empreendimentos que chegam antes do Estado, e, muitas vezes, blindados pelo argumento da “transição energética”, como se energia “limpa” autorizasse sujar territórios.
O PL 131/2020, que deveria ser um compromisso natural de um governo que diz colocar justiça social no centro das decisões, segue caminhando lentamente no Congresso. A ausência de apoio explícito do Executivo enfraquece uma pauta que é estratégica não só para a pesca artesanal, mas para o combate à crise climática, porque proteger territórios pesqueiros é proteger o que resta de funcional nos ecossistemas costeiros brasileiros. Qualquer política climática séria – e de combate à famigerada PEC 03/2022, a PEC das Praias – deveria começar por aí.
“Sem território garantido, não existe justiça climática, não existe futuro para os povos do mar”, afirmou na COP30 Carlos Alberto Pinto dos Santos, da CONFREM. Sua fala ecoa o que muitos repetiram na conferência: não basta celebrar avanços seletivos. É preciso garantir que todos os povos tradicionais tenham direitos respeitados, não apenas aqueles cujas lutas já são mais conhecidas pelo público e pela imprensa.
A agenda climática brasileira só será coerente quando reconhecer a centralidade dos povos que protegem o oceano, os estuários e os manguezais. Não por romantização, mas por necessidade. São eles que mantêm vivos os ecossistemas que amortecem tempestades, filtram poluentes, garantem alimento e sustentam a biodiversidade. Ignorá-los, como ocorreu na COP30, é mais que omissão: é erro estratégico.
Erro que se repete quando o ICMBio decide recuar das consultas públicas para a criação das Resex Costeiras e Marinhas no litoral do Amapá, uma demanda histórica de pescadores e pescadoras que defendem esses territórios há décadas. Ao suspender o processo, o Estado sinaliza que está mais disposto a abrir novas fronteiras de petróleo na Amazônia do que a proteger quem já cuida dessas águas. É a mesma lógica que esvazia a política climática no discurso e a compromete na prática.

O Brasil desperdiçou em Belém uma oportunidade histórica de demonstrar maturidade climática e compromisso integral com todos os povos tradicionais. Esse é um resultado que se soma a um cenário ainda mais preocupante: com o Congresso Nacional derrubando vetos presidenciais, desmontando salvaguardas socioambientais e fragilizando o licenciamento ambiental, os territórios da pesca artesanal, das marés e das águas tornam-se ainda mais expostos ao avanço de empreendimentos predatórios e à especulação. Se o guarda-chuva legal que deveria conter danos está sendo rasgado no plenário, recai sobre o governo federal a responsabilidade ainda maior de proteger quem vive e sustenta esses territórios.
E é exatamente nesse ponto que a paralisia diante de três demandas centrais apresentadas pelas comunidades durante a COP30 se torna ainda mais grave: a assinatura imediata do Marco Legal dos Territórios Tradicionais, a criação das novas Resex costeiras e marinhas e o apoio explícito ao PL 131, que reconhece os Territórios Pesqueiros Tradicionais. Juntas, essas medidas compõem o mínimo civilizatório para garantir segurança jurídica, permanência no território e capacidade real de enfrentar a emergência climática, especialmente num país onde o retrocesso legislativo tem caminhado mais rápido que a proteção socioambiental.
Resta agora decidir se o ano de 2025 terminará com a assinatura do Marco Legal dos Territórios Tradicionais e a criação das três novas Reservas Extrativistas (Resex) costeiras e marinhas (do Tauá Mirim no Maranhão, do Rio Formoso em Pernambuco e de Itacaré na Bahia), ou se o país seguirá adiando aquilo que as próprias lideranças chamam de “único caminho para adiar o fim do mundo”. As comunidades já fizeram sua parte: organizaram-se, apresentaram soluções, construíram instrumentos legais, vieram à COP com propostas claras. O próximo movimento precisa vir de quem detém a caneta.
Artigo assinado por:
Josana Pinto
Coordenadora nacional do Movimentos de Pescadores e Pescadoras Artesanais (MPP) e integrante do Fórum Mundial dos Povos Pescadores (WFFP)
Carlos Alberto Pinto dos Santos
Coordenador de relações institucionais da Comissão Nacional para o Fortalecimento das Reservas Extrativistas e dos Povos Extrativistas Costeiros e Marinhos (CONFREM) e membro do Conselho Nacional de Povos e Comunidades Tradicionais (CNPCT)
Andrea Rocha do Espírito Santo
Agente pastoral do Conselho Pastoral dos Pescadores e Pescadoras (CPP)
Henrique Callori Kefalás
Coordenador executivo do Instituto Linha D’Água





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