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Sistema Alimentar da Pesca Artesanal: soluções da Amazônia e da Mata Atlântica para um oceano em equilíbrio

  • comunicacao5558
  • há 1 hora
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Soluções construídas por comunidades costeiras revelam que a justiça climática começa nos territórios da pesca artesanal: do mar ao prato, das políticas públicas à luta por direitos.


Sistema Alimentar da Pesca Artesanal: soluções da Amazônia e da Mata Atlântica para um oceano em equilíbrio

Na tarde da última quarta-feira (19/11), a Cas’Amazônia, em Belém, se transformou em um grande ponto de encontro entre mar, floresta e cidade. A roda de conversa “Sistema Alimentar da Pesca Artesanal: soluções da Amazônia e da Mata Atlântica para um oceano em equilíbrio”, organizada pelo Instituto Linha D’Água, reuniu lideranças comunitárias, pesquisadoras, cooperativas e organizações parceiras para discutir algo que ainda passa longe dos espaços oficiais da COP30: o papel da pesca artesanal e do extrativismo costeiro-marinho na segurança alimentar, na conservação da sociobiodiversidade e na adaptação climática. Em um momento em que o mundo fala de transição justa e sistemas alimentares, a mensagem vinda da Cas’Amazônia foi clara: justiça climática também se faz com peixe na mesa – e com direitos garantidos a quem vive do mar.


Ao abrir a roda, o coordenador executivo do Linha D’Água, Henrique Kefalás, lembrou que a pesca artesanal ainda é tratada como tema lateral, mesmo quando o assunto é comida, fome e políticas públicas. Ele destacou que a pesca envolve milhões de pessoas na costa brasileira, entre quem pesca, beneficia, transporta e vende o pescado, mas continua invisível nos documentos importantes e nos grandes compromissos globais.


“A discussão sobre sistemas alimentares tem acontecido bastante aqui durante a COP, mas a gente ainda não vê esse assunto da pesca conectado a essa agenda”, afirmou. “Quando aparece, normalmente é o pirarucu que vira símbolo, mas a pesca costeira e marinha, que garante alimento diário pra muita gente, segue quase invisível. Fortalecer a pesca artesanal é, ao mesmo tempo, política de direitos humanos, de território e de justiça climática”.



Desafios estruturais: PAA, logística e o rural aquático que o Estado não enxerga


Desafios estruturais: PAA, logística e o rural aquático que o Estado não enxerga

Da perspectiva da ciência e das políticas públicas de alimentação, Nátali Piccolo, da Conservação Internacional (CI-Brasil), trouxe dados inéditos que ajudam a entender por que a pesca artesanal tem tanta dificuldade em acessar programas como o Programa de Aquisição de Alimentos (PAA). Ao analisar dados de diferentes regiões, ela mostrou que as compras públicas de pescado seguem priorizando sistemas mais simples do ponto de vista burocrático e logístico – em geral, ligados à aquicultura – em vez da pesca extrativista.


“No Nordeste, por exemplo, a tilápia responde por quase metade das compras de pescado do PAA”, explicou. “Isso mostra que a aquicultura familiar está tomando, sim, o espaço da compra pública dos pescadores artesanais costeiros e marinhos. Não porque os pescadores produzem menos, pelo contrário, mas porque o sistema foi pensado pra quem está em terra firme, não pra quem vive no rural aquático”.


Nátali também alertou que boa parte do recurso depende de emendas parlamentares, o que aumenta a desigualdade entre territórios: alguns conseguem estruturar projetos e acessar o PAA, enquanto outros seguem à margem, mesmo tendo pescado em abundância.


Na interface entre conservação e direitos, Tatiana Rehder, do Instituto Chico Mendes de Conservação da Biodiversidade (ICMBio), apresentou a aposta da instituição em olhar para as unidades de conservação também como territórios de produção, cuidado e bem viver. Ela contou que o órgão criou coordenações específicas de Gestão da Informação para o Bem Viver e de Pesca Artesanal e que equipes têm percorrido reservas extrativistas e outras unidades, de casa em casa, para entender quem está ali, que políticas acessa e onde estão os gargalos.


“Já passamos por cerca de 88 unidades de conservação, conversando com aproximadamente 120 mil famílias – algo como 350 mil pessoas”, relatou. “Mesmo nas políticas que foram pensadas pra ser mais simples, como o Bolsa Verde, menos da metade das famílias indicadas conseguem, de fato, receber o benefício. Isso mostra que o problema não é a falta de produção ou de organização das comunidades, mas sim a dificuldade do Estado em chegar na ponta e reconhecer o rural aquático como parte legítima das políticas públicas”.


Do litoral sul de São Paulo, José Mário Fortes, o Majó, da Cooperpesca Artesanal de Iguape, deu corpo a essa discussão com uma história concreta de tentativa, erro e reinvenção. Ele relembrou que a unidade de beneficiamento de pescado começou em 1998, a partir de um programa federal que instalou câmaras frias e equipamentos sem combinar com a base como seria a gestão, o que gerou conflitos, fechamentos e reaberturas sucessivas. Só anos depois, com um plano construído “de baixo pra cima”, a cooperativa reorganizou o negócio, apostou na transformação do pescado e passou a mirar as compras institucionais.


“Durante muito tempo, a gente vendeu peixe in natura no Ceagesp, com preço baixo, sem quase nenhum impacto pra economia local”, contou. “Quando a gente decide apostar no beneficiamento e entrar no PAA e no PNAE, é porque percebe que não dá mais pra ficar só no mercado tradicional. A gente não vê outra saída que não seja o cooperativismo. O que falta é confiança real nas organizações da base e políticas que acelerem esse tipo de estrutura”.


Da costa paraense, Sandra Regina Pereira Gonçalves, da CONFREM, lembrou que sistemas alimentares também têm rosto de mulher. Ela apresentou iniciativas como a Rede Mães do Mangue, que mantém restaurantes comunitários em dois municípios, integrando manejo do mangue, beneficiamento e gastronomia, e a fábrica de pescado resfriado “Encurtando Elos”, pensada para atender inclusive à alimentação escolar, com apoio de diferentes parceiros institucionais.


“Se a gente não fizer fala firme, a gente não tem conquista”, disse Sandra. “Nós somos guardiãs da maior faixa contínua de manguezal protegido do mundo e, mesmo assim, quem vive nas reservas ainda precisa provar todo dia que tem direito de estar ali, pescando, produzindo e alimentando o povo. O que estamos construindo é cadeia produtiva com rosto, com história, com mulheres à frente – do mangue até o prato”.


A invisibilidade da pesca artesanal nas políticas públicas


A invisibilidade da pesca artesanal nas políticas públicas

A fala mais incisiva sobre a dimensão estrutural do problema veio de Carlos Alberto Pinto dos Santos, o Carlinhos, coordenador de relações institucionais da CONFREM. Ele defendeu que fortalecer o sistema alimentar da pesca artesanal é, antes de tudo, enfrentar a omissão do Estado.


“Empoderar a comunidade é algo que dá resultado”, afirmou. “A miséria que a gente vê nas reservas não é miséria de produção; é miséria de política pública. O Estado tem um grande débito com as comunidades pesqueiras. Não faz sentido a gente usar dinheiro de cooperação internacional pra construir infraestrutura de pesca. Isso é papel do Estado brasileiro”.


Carlinhos criticou o sistema de inspeção que impede que o mesmo caranguejo servido no café da manhã em casa chegue à alimentação escolar e apontou a necessidade de disputar recursos de compensação ambiental e de empresas como a Petrobras. “A gente levanta bandeira contra a exploração de petróleo, mas levanta com coerência”, completou.

“Enquanto nosso barco tiver motor a diesel, a gente ainda depende desse sistema. Então, se o recurso da Petrobras é pra aliviar a consciência, que seja pra pagar a conta de quem é impactado. Esse financiamento tem que chegar direto na ponta e sem retorno; é responsabilidade do Estado e das empresas estatais”.


Com a fala aberta para o público, Flávio Lontro, coordenador-geral da CONFREM, resgatou a memória de quando o município em que vive, na APA Guapimirim, no Rio de Janeiro, foi pioneiro em incluir peixe na alimentação escolar, com apoio do PAA, valorizando espécies desvalorizadas e conectando diretamente pescadores e escolas. Ao mesmo tempo, revelou a frustração de ver avanços pontuais conviverem com um cenário nacional ainda travado por burocracia, falta de logística e insegurança política.


Em suas palavras, a COP30 tem sido, ao mesmo tempo, espaço de articulação internacional e “escola política” para as comunidades costeiras e marinhas: “Romper barreiras também passa por parar de acreditar que a gente não pode estar nesses espaços”, refletiu. “O que a gente está sonhando é possível de fazer. Nosso problema não é falta de produção; é falta de política pública, de reconhecimento e de coragem”.


Fechando a roda de debate, Sarah de Oliveira, Diretora Executiva da Lex Experts, trouxe o olhar de quem atua como consultora ao lado de organizações pesqueiras na difícil tarefa de superar as barreiras sanitárias que dificultam o acesso da pesca artesanal aos mercados. Ao retomar casos concretos, como o das mulheres da Enseada da Baleia e da Ilha do Cardoso, que produzem peixe salgado seco desde o século XIX e até hoje não conseguem ter esse produto reconhecido e regularizado, Sarah questionou “a quem interessa” manter os produtos da pesca artesanal fora do mercado formal.


Para ela, parte do problema está em um modelo de regulação sanitária desenhado para grandes plantas industriais, distante da realidade das cadeias curtas e dos empreendimentos comunitários, o que acaba transformando a inspeção em barreira de exclusão, e não em ferramenta de inclusão produtiva. Sarah reforçou que a discussão sobre qualidade e segurança dos alimentos é central, mas que a inspeção sanitária precisa ser entendida como meio e não como fim em si mesma.


Para mudar esse quadro, defendeu um processo educativo dirigido ao próprio Estado: fiscais municipais, estaduais e federais, serviços de inspeção e equipes de governo precisam ser formados para compreender o rural aquático, as especificidades da pesca artesanal e o papel estratégico dessas cadeias para a segurança alimentar.


Diante desse debate, é evidente a necessidade de conectar as diversas iniciativas já em curso, construir diretrizes específicas para a pesca artesanal e garantir que os instrumentos sanitários cumpram seu verdadeiro papel: abrir caminhos, liberar recursos e criar oportunidades para que o peixe das comunidades tradicionais chegue, com segurança e dignidade, às mesas das escolas, hospitais, restaurantes populares e programas públicos em todo o país.


Ao reunir essas vozes na Cas’Amazônia, em plena COP30, o evento do Instituto Linha D’Água deixou um recado direto para negociadores, governos e financiadores: não haverá justiça climática nem transição justa sem reconhecer que sistemas alimentares também começam no mangue, na maré e nas mãos de quem pesca. O Brasil só será verdadeiramente referência em sustentabilidade quando a pesca artesanal deixar de ser rodapé e ocupar, de fato, o centro da mesa, como política pública, como economia da sociobiodiversidade e como projeto de futuro para os povos do mar e das águas.


Assista ao vídeo com os destaques do evento:





Confira fotos do evento:


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