Gestão comunitária da visitação no Núcleo Perequê: um caminho de mobilização social e resiliência
- comunicacao5558
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*Texto elaborado em colaboração com a pesquisadora Natália Bahia (CGCommons/UNICAMP)
No território caiçara de Itacuruçá-Pereirinha, a parceria entre AMOIP, Instituto Linha D’Água e Fundação Florestal transforma um núcleo desativado em referência de turismo de base comunitária, reconhecimento de direitos territoriais e conservação baseada em direitos humanos.

No território caiçara de Itacuruçá-Pereirinha, no Parque Estadual Ilha do Cardoso (SP), um antigo centro de pesquisa desativado vem ganhando um novo significado: tornar-se referência em gestão comunitária da visitação e turismo de base comunitária. É essa trajetória que o artigo científico “Community management of tourism in the Perequê Center: a path of social mobilization and resilience" (Gestão comunitária da visitação no Núcleo Perequê: um caminho de mobilização social e resiliência, tradução livre) traz para o debate público e acadêmico, sistematizando uma experiência que combina mobilização social, negociação com o Estado e fortalecimento de direitos territoriais no Núcleo Perequê.
Assinado pela pesquisadora Natália Bahia (CGCommons/UNICAMP), por Henrique Kefalás (coordenador executivo do Instituto Linha D'Água) e por John M. Wojciechowski (gerente de Desenvolvimento Territorial do Linha D'Água), e publicado na revista internacional Tourism Planning & Development, (Planejamento e Desenvolvimento do Turismo, em tradução livre) o artigo registra uma etapa decisiva dessa trajetória e convida a enxergar a conservação a partir de quem vive e cuida do território.
Ao mesmo tempo, sistematiza a experiência da equipe multidisciplinar do Instituto Linha D'Água (LDA), em parceria com a Associação de Moradores das Comunidades do Itacuruçá e Pereirinha (AMOIP), na construção do termo de convênio com a Fundação Florestal para a gestão comunitária da visitação pública no Núcleo Perequê.
A pesquisa recompõe, a partir de registros, oficinas e reuniões, o caminho trilhado ao longo do segundo semestre de 2022: da análise crítica da proposta inicial apresentada pelo órgão ambiental às negociações que resultaram em um convênio alinhado à visão comunitária de uso público, qualidade de vida e permanência no território. Mais do que descrever procedimentos, o texto busca refletir criticamente sobre os aprendizados, tensões e avanços de uma parceria público-comunitária construída a muitas mãos.
Desde o início de sua atuação, o Instituto Linha D’Água vem apoiando projetos e iniciativas de turismo em áreas protegidas protagonizados por povos e comunidades tradicionais, entendendo o turismo de base comunitária como estratégia de geração de renda, valorização da sociobiodiversidade, fortalecimento cultural e melhoria da qualidade de vida. No caso de Perequê, o apoio ao processo de negociação do convênio com a AMOIP foi planejado coletivamente com as moradoras e os moradores tradicionais de Itacuruçá-Pereirinha,
atendendo a uma demanda apresentada pela Procuradoria da República em Registro (MPF) e pela Defensoria Pública do Estado de São Paulo em Registro (DPE).
A partir daí, o que poderia ser apenas um ajuste técnico de minuta se transformou em um exercício intenso de leitura coletiva, mapeamento participativo, construção de modelo de turismo de base comunitária e afirmação de direitos territoriais em um território historicamente sobreposto por políticas de conservação. O Núcleo Perequê, antigamente conhecido como Centro de Pesquisa Aplicada em Recursos Naturais da Ilha Cardoso, foi construído em sobreposição à comunidade tradicional Caiçara do Itacuruçá-Pereirinha na década de 1970. Pesquisas científicas e iniciativas de educação ambiental foram desenvolvidas nesse espaço entre os anos de 1980 e 2000. Após este período, devido à realização de reformas nas estruturas públicas, o Núcleo Perequê ficou inativo por cerca de quinze anos, exceto pelos grupos de visita diurnos recebidos ocasionalmente pela monitoria ambiental.
Os moradores tradicionais se organizaram, fundaram a AMOIP em 2010 e, desde então, buscaram por alternativas para promover a gestão comunitária da visitação no Núcleo Perequê. Em maio de 2022, a equipe da Fundação Florestal apresentou uma proposta de acordo, que incluiu expectativas para os serviços turísticos prestados pela AMOIP, direitos e responsabilidades do órgão ambiental e da associação local. As técnicas e ferramentas utilizadas pela equipe do LDA para apoiar os comunitários na leitura e análise coletiva da proposta inicial, no desenvolvimento de um modelo para as atividades de turismo de base comunitária e nos espaços de negociação para reestruturação do termo de convênio foram apresentados no artigo.
O mapeamento participativo do Núcleo Perequê e a construção da linha do tempo com a história da comunidade do Itacuruçá-Pereirinha foram utilizados tanto para análise crítica da minuta do convênio, como para o planejamento e a estruturação do empreendimento de base comunitária. O modelo inicial das atividades de turismo de base comunitária foi desenvolvido coletivamente a partir de três dimensões básicas - operacional, comercial e gerencial. Esta etapa foi essencial para construir a visão comunitária tanto sobre as atividades a serem desenvolvidas no Núcleo Perequê como sobre o contexto em que este processo de negociação estava inserido.
A visão comunitária, baseada nas vivências e capacidades construídas ao longo do tempo e aspirações futuras, permitiu que os membros da AMOIP negociassem com o órgão ambiental e reconstruíssem o termo de convênio. Essas informações foram ainda apresentadas por meio de uma nota técnica ao Ministério Público Federal e à Defensoria Pública Estadual.

A equipe do LDA, além de participar ativamente das reuniões com a associação local e o órgão ambiental, realizou uma sequência de leituras e reflexões coletivas com os moradores do Itacuruçá-Pereirinha para ajustar o termo de convênio com os princípios norteadores da negociação e o modelo do empreendimento comunitário propostos pela AMOIP. Nesta fase, um evento foi ainda organizado e realizado pela AMOIP no Núcleo Perequê para colocar em prática as atividades de turismo de base comunitária desenhadas.
O convênio, firmado entre a AMOIP e a Fundação Florestal em janeiro de 2023, representa tanto um marco para a permanência das comunidades tradicionais em seus territórios como uma inovação de arranjo turístico local. O reconhecimento dos passivos históricos e a responsabilização do órgão ambiental em relação ao desenvolvimento socioeconômico e à qualidade de vida da comunidade tradicional tornaram esta parceria uma alternativa promissora no debate sobre a gestão do uso público em áreas protegidas.
O apoio e fortalecimento da AMOIP pelo LDA e outros parceiros para reinvindicação e exercício de seus direitos foi importante para redução do desequilíbrio de poder entre as partes envolvidas no processo de construção do convênio1. Além disso, entendimento local sobre qualidade de vida foi um elemento-chave no planejamento e na implementação do turismo de base comunitária no Núcleo Perequê, sendo importante também para o monitoramento e avaliação da visitação no território tradicional2.
Essa experiência foi relatada também texto “Parceria Público-Comunitária: o caso do Parque Estadual Ilha do Cardoso” no blog do Instituto Linha D´Água, além de ter se tornado um emocionante documentário: "Olhar Caiçara".
Conservação baseada em direitos humanos e as parcerias público-comunitárias

O Quadro Global de Biodiversidade Pós-2020¹ reconheceu a abordagem baseada nos direitos humanos como um princípio fundamental para a implementação de estratégias de conservação eficazes e equitativas². Desde a década de 1980, abordagens inclusivas para a conservação têm sido desenvolvidas e aplicadas em diferentes regiões do planeta, considerando a dimensão social e incluindo valores como participação social, equidade e justiça ambiental. Contudo, os direitos humanos não tem sido abordados de maneira consistente nos esforços para preservar a biodiversidade. Isso é percebido quando povos e comunidades tradicionais ainda são tratados como beneficiários ou objetos passivos nas estratégias de conservação³.
As parcerias público-comunitárias para visitação em áreas protegidas apresentam-se como uma alternativa para o reconhecimento dos direitos territoriais e sociais dos povos indígenas e das comunidades locais, a promoção do protagonismo local e a valorização da sociobiodiversidade. Existem ainda inúmeros desafios a serem superados para o estabelecimento e a manutenção destes arranjos turísticos locais, desde limitações dos instrumentos jurídicos disponíveis, diálogo entre os conhecimentos técnico-científico e local, reconhecimento do papel do Estado, assimetrias de poder e informações e outros.
“Só vai ser possível cuidar das áreas protegidas na medida em que povos e comunidades tradicionais sejam percebidos, enxergados e tratados como verdadeiros aliados e protagonistas no processo de conservação da natureza” (Henrique Kefalás, documentário Olhar Caiçara, novembro de 2024).
Agradecimento: Este texto deriva em parte de um artigo publicado em Tourism Planning & Development, 03 de novembro de 2025, copyright Taylor & Francis, disponível online: https://www.tandfonline.com/doi/full/10.1080/21568316.2025.2574397.
Referências:
1 Convention on Biological Diversity. IUCN’s Position Post-2020 Global Biodiversity Framework. Fourth meeting of the Open-Ended Working Group on the Post-2020 Global Biodiversity Framework (OEWG4), 2022. https://iucn.org/sites/default/files/2022-07/iucn-position-paper-oewg-4_0.pdf.
2 NEWING, Helen; PRADO, Amelia Arreguin; BRITTAIN, Stephanie; DOYLE, Cathal; KENRICK, Justin; KONÉ, Lassana; LONG, Catherine; LUNN, Adam, PERRAM, Anouska; RADFORD, Lucy, ROWLEY, Tom; TUGENDHAT, Helen. Conservation and Human Rights: an introduction. The Interdisciplinary Centre for Conservation Science (ICCS), Oxford UK and Forest Peoples Programme (FPP), Moreton in Marsh, UK, 2024. https://www.forestpeoples.org/publications-resources/reports/article/conservation-and-human-rights-an-introduction-1/.
3 WOODHOUSE, Emily; HOMEWOOD, Katherine M.; BEAUCHAMP, Emilie; CLEMENTS, Tom; MCCABE, J. Terrence; WILKIE, David; MILNERGULLAND, E. J. Guiding principles for evaluating the impacts of conservation interventions on human wellbeing. Philosophical Transactions of the Royal Society B: Biological Sciences, 370(1681), 20150103, p. 11, 2015. https://doi.org/10.1098/rstb.2015.0103.





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