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Sociobiodiversidade em foco: construindo pontes para a Pesca Artesanal

  • comunicacao5558
  • 17 de jul.
  • 10 min de leitura

Em um cenário em que as políticas públicas estruturais ainda falham em chegar a quem vive da pesca, comunidades tradicionais, redes socioambientais e órgãos do governo se unem para proteger a economia, a cultura e a soberania alimentar do país.


Entre Redes e Marés - imagem de pescadorlançando rede no mar

O Brasil ostenta mais de 8 mil quilômetros de costa e vastas águas interiores, que sustentam uma das atividades econômicas e culturais mais antigas do mundo: a pesca artesanal. No entanto, para milhares de famílias que vivem do mar e dos rios, manter essa tradição significa encarar desafios tão elementares quanto obter gelo, internet ou acesso a crédito.


Apesar de compor a base da segurança alimentar nacional, a pesca artesanal segue invisível nos grandes planos de desenvolvimento do Estado brasileiro. A falta de reconhecimento institucional e a exclusão dos pescadores artesanais das políticas públicas estruturantes colocam em risco não apenas a subsistência de comunidades tradicionais, mas também a conservação dos ecossistemas costeiros e marinhos.


Um exemplo gritante dessa lacuna é o recente anúncio do Plano Safra 2025/2026. Mesmo com a previsão recorde de R$ 89 bilhões em crédito para a agricultura familiar, “incluindo” a pesca artesanal, na prática, esse valor não chega efetivamente ao bolso dos pescadores. Os números da safra 2024/2025 evidenciam o desequilíbrio: o governo divulgou que apenas R$ 378 milhões em créditos foram destinados à pesca - e ainda assim sem distinguir a pesca industrial da artesanal.


Para a grande maioria dos pescadores e das pescadoras artesanais, esses recursos continuam inatingíveis, sobretudo porque o acesso ao crédito exige garantias formais, documentos e cadastros que não refletem a realidade socioeconômica das comunidades. Sem terra registrada em nome próprio, sem histórico bancário ou mesmo sem internet estável para processar documentos, a pesca artesanal fica à margem do sistema financeiro, com acesso reduzido a linhas de crédito e aos programas de incentivo. Há, de fato, um “abismo” entre a realidade pesqueira e as exigências institucionais.


É justamente nesse cenário que as economias da sociobiodiversidade despontam como caminho estratégico para diminuir a distância entre as comunidades tradicionais e as políticas públicas. Embora cada vez mais citadas nos discursos governamentais, ainda são pouco conhecidas fora dos círculos técnicos. Esse conceito abrange atividades econômicas fundamentadas no uso sustentável dos recursos naturais, integrando saberes tradicionais, conservação ambiental e geração de renda. Englobam desde a pesca artesanal até o turismo de base comunitária, o extrativismo vegetal, a produção artesanal e a criação de produtos gastronômicos a partir de subprodutos pouco valorizados.


Atento a essa realidade, o Instituto Linha D'Água, em parceria com diversas organizações, vem intensificando sua atuação para colocar as economias da sociobiodiversidade no centro das estratégias de fortalecimento da pesca artesanal e dos territórios costeiros e marinhos. Acredita-se que, ao unir tradição, inovação e políticas públicas bem estruturadas, é possível não apenas garantir renda digna às comunidades, mas também assegurar a conservação dos ecossistemas que sustentam a vida no mar e nos rios.


Oficinas mapeiam desafios das Economias da Sociobiodiversidade de Norte a Sul do Brasil



O Instituto Linha D'Água esteve presente e envolvido no apoio à organização de um ciclo inédito de três oficinas regionais, realizadas pelo Instituto Chico Mendes de Conservação da Biodiversidade (ICMBio), que percorreram o Brasil entre dezembro de 2024 e maio de 2025. Sob o título “Planejamento do Fortalecimento das Economias da Sociobiodiversidade na Zona Costeira e Marinha", os encontros reuniram pescadores, marisqueiras, quilombolas, técnicos e representantes do governo para pensar caminhos concretos para a compreensão e estruturação das cadeias da sociobiodiversidade.


A primeira oficina aconteceu em Belém, no Pará, entre 3 e 5 de dezembro de 2024. Ali, representantes das Unidades de Conservação, especialmente das Reservas Extrativistas Marinhas do Pará, Maranhão e Amapá compartilharam diagnósticos, desafios e propostas. Foram debatidos desde o manejo sustentável do caranguejo-uçá até o turismo comunitário.

Para os pescadores, fortalecer essas economias significa muito mais do que apenas gerar renda. É uma estratégia de resistência cultural, autonomia e defesa do território. "A gente não precisa sair das nossas comunidades para ganhar dinheiro. A gente pode ganhar dinheiro com o que a gente tem, e assim defender os nossos territórios", afirmou Lana Bruzaca, da Resex Baía do Tubarão, na Costa Amazônica.


A segunda oficina, realizada em abril de 2025, ocorreu na Ilha do Cardoso, em Cananéia (SP), reunindo representantes do Sul e Sudeste. Um dos casos apresentados foi o projeto Olha o Peixe!, do Paraná, que compra pescados exclusivamente de comunidades artesanais, garantindo rastreabilidade e fortalecendo o mercado local. Mas mesmo ali, os pescadores esbarram na falta de infraestrutura para armazenar peixe fresco, caindo na dependência dos atravessadores.


No Rio Grande do Sul, outro relato mostrou como o Parque Nacional da Lagoa do Peixe, onde antes era proibido até entrar para pescar, passou a permitir a atividade em zonas delimitadas após longo processo de diálogo. "Agora, em 2025, o termo de compromisso vai ser renovado. Antes, não podia nem entrar na Lagoa. O termo autorizou a gente a pescar", conta Nenzão, pescador local. Mas ele também denuncia: "a maior dificuldade hoje é não ter um selo sanitário."


A terceira oficina regional, realizada em maio de 2025, em Tamandaré, Pernambuco, trouxe à tona realidades do Nordeste. Ficou claro como cadeias produtivas, como a da sardinha em Fernando de Noronha ou do caranguejo-uçá no Delta do Parnaíba, enfrentam obstáculos comuns: falta de energia estável, cadeias de frio, acesso a crédito e ausência de assistência técnica continuada.


Ao longo das três oficinas, se consolidou a percepção de que não há como falar em cadeias produtivas sustentáveis sem infraestrutura básica. Tatiana Rehder, Coordenadora Geral de Acesso a Políticas Públicas e Promoção das Economias da Sociobiodiversidade do ICMBio, sintetizou o drama: "sem gelo, sem internet e sem água potável, não há cadeia produtiva que se sustente."


Além da infraestrutura, outro gargalo é a integração de cadastros governamentais. O Registro Geral da Pesca (RGP), por exemplo, é exigido para acessar benefícios, mas muitas comunidades não conseguem sequer realizar o cadastro por falta de internet ou documentação regularizada. "Existem 15 mil famílias fora de qualquer política pública só porque não aparecem no CadÚnico", revelou Tatiana.


Ainda para 2025, estão previstas novas etapas desse trabalho. Entre os compromissos, está a elaboração de um plano estratégico nacional para a COPESC, a Coordenação de Pesca Artesanal do ICMBio, além de intercâmbios entre comunidades, como visitas técnicas entre a Resex Canavieiras e outras regiões, para compartilhar soluções práticas.


Além do ICMBio, estiveram presentes representantes do Ministério da Pesca e Aquicultura (MPA), do Ministério do Desenvolvimento Agrário e Agricultura Familiar (MDA), do Ministério do Desenvolvimento e Assistência Social, Família e Combate a Fome (MDS), do Ministério do Meio Ambiente e Mudança do Clima (MMA) e da Companhia Nacional de Abastecimento (Conab). Cada órgão expôs programas existentes, reconhecendo, porém, os enormes desafios para fazer as políticas públicas chegarem às comunidades.


Articulação em rede como base para fortalecer a Sociobiodiversidade

Foto do Encontro Nacional do ÓSocioBio

Nesse vácuo estatal, as organizações da sociedade civil têm sido decisivas. O Instituto Linha D'Água, por exemplo, não só participa das discussões, mas contribui tecnicamente para conectar demandas comunitárias a políticas públicas, além de estimular a atuação em redes.

Nos dias 11 e 12 de junho, o Instituto esteve presente no III Encontro Presencial do Observatório das Economias da Sociobiodiversidade (ÓSocioBio), que aconteceu em Brasília e contou com a presença de mais de 20 organizações, com representantes de povos e comunidades tradicionais, sociedade civil e parceiros institucionais.


Comprometidos com a defesa e o fortalecimento das cadeias produtivas da sociobiodiversidade, o evento programou estudos de caso sobre diferentes formas de participação e papéis na rede, além de debater o cenário político atual e seus impactos nos territórios e nos direitos dos povos da floresta, dos campos e das águas.


A programação também incluiu um balanço dos três primeiros anos de atuação do ÓSocioBio, uma rede formada por organizações socioambientais, movimentos sociais, cooperativas comunitárias e redes de povos dos campos, das florestas e das águas.


ÓSocioBio atua no monitoramento de políticas públicas e projetos de lei, realiza incidência política e promove a participação social, com o objetivo de fortalecer sistemas socioprodutivos sustentáveis e garantir a soberania alimentar, os modos de vida e a permanência de povos indígenas, comunidades tradicionais e agricultores familiares em seus territórios em todo o Brasil.


No evento foi apresentado também uma série de dados inéditos organizados pelo WRI Brasil e dinâmicas sobre o novo modelo de governança da rede. As discussões apontaram caminhos para ampliar a articulação da rede em 2025 e 2026, com atenção especial aos desafios da agenda política nacional e ao papel da sociedade civil nos espaços de decisão.



Logística justa: sociobiodiversidade ganha espaço no PNL 2050


Foto dos participanetes do Grupo Focal para o PNL 2050

A logística é um elo invisível, mas determinante, para o futuro das economias da sociobiodiversidade no Brasil. Enquanto produtos de comunidades tradicionais percorrem caminhos precários até os mercados, milhares de pessoas seguem isoladas por falta de infraestrutura básica. Nesse cenário, incidir sobre o Plano Nacional de Logística 2050 (PNL 2025) é uma oportunidade para lançar luz sobre essas realidades historicamente ignoradas, propondo um olhar que una sustentabilidade, justiça social e desenvolvimento territorial.


É nesse contexto que se debate uma logística justa, fundamental para que as riquezas naturais e culturais do país não fiquem apenas no discurso, mas se transformem em oportunidades reais para quem vive do mar, dos rios e das florestas. No dia 4 de junho de 2025, o Auditório da Controladoria-Geral da União (CGU), em Brasília, sediou a Reunião de Grupo Focal para o PNL 2050, reunindo mais de vinte organizações da sociedade civil, representantes de ministérios e lideranças comunitárias.


Organizado pelo Ministério dos Transportes e pela CGU, o encontro discutiu desafios e soluções para integrar as cadeias da sociobiodiversidade e melhorar a mobilidade dos povos tradicionais. Gabriela Avelino, Subsecretária de Fomento e Planejamento do Ministério dos Transportes, destacou que o PNL 2050 busca um planejamento mais inclusivo e sustentável, que antecipe variáveis socioambientais e coloque as comunidades tradicionais no centro das decisões.


A programação da reunião incluiu debates sobre cadeias produtivas, mobilidade e políticas públicas, além de oficinas temáticas. Vinícius Oliveira, do Instituto de Energia e Meio Ambiente (IEMA), apresentou dados mostrando que 63% da produção da sociobiodiversidade é comercializada, enquanto 37% é consumida localmente, o que, segundo ele, “dificulta a visibilidade dessas cadeias em modelos logísticos baseados em notas fiscais eletrônicas. Sem esses dados, a sociobiodiversidade segue invisível no planejamento logístico do país.”


A pesca artesanal teve voz marcante no encontro. José Mário de Souza Fortes, presidente da Cooperpesca Artesanal, destacou os desafios da pesca artesanal, especialmente para comunidades caiçaras, guaranis e quilombolas. Ele explicou que, embora o cooperativismo organize a cadeia produtiva, a falta de infraestrutura básica, como energia, gelo e transporte refrigerado, compromete a qualidade do pescado e empurra os pescadores para a dependência de atravessadores. “Sem infraestrutura, não conseguimos competir de forma justa”, afirmou.


José Mário também criticou políticas públicas baseadas apenas em incentivos individuais, como o Programa Nacional de Fortalecimento da Agricultura Familiar (Pronaf), e defendeu o fortalecimento de soluções coletivas e tecnológicas para garantir mercado e renda justa. “O preço justo envolve toda a cadeia produtiva, da captura ao consumo final”, disse.


Para ele, dados precisos, capacitação e tecnologia são essenciais para que a pesca artesanal ganhe espaço no planejamento logístico nacional e deixe de ser invisível nas políticas públicas.

Também ganhou destaque o manejo do pirarucu, apresentado por Ana Cláudia Torres, do Instituto Mamirauá. Em Tefé (AM), a cadeia movimenta cerca de R$ 35 milhões ao ano, mas enfrenta entraves como embarcações inadequadas e falta de gelo. “Não é falta de peixe, é falta de logística”, explicou Ana, destacando que “cada lago protegido significa floresta preservada e alimento na mesa das comunidades.”


Apesar das dificuldades, o evento deixou claro o compromisso de incluir essas realidades no planejamento nacional. Gilson Curuaia, da Coordenação das Organizações Indígenas da Amazônia Brasileira (COIAB), afirmou: “Sem respeito aos territórios e às economias de resistência, não há futuro possível.” Já Gabriela Avelino reforçou que “problemas não identificados nesta fase não serão priorizados nem terão solução no futuro.”


O PNL 2050, criado pelo Decreto nº 12.022/2024, busca mapear fluxos de carga e pessoas, diagnosticar deficiências, definir prioridades e propor soluções até 2050. Encontra-se atualmente na fase de diagnóstico, recolhendo contribuições da sociedade civil. É vital garantir que as comunidades tradicionais não permaneçam invisíveis no planejamento logístico nacional.



Sociobiodiversidade no centro das novas políticas nacionais

Foto da dinâmica da Oficina de Diálogos do Plano Nacional da Sociobioeconomia em Iperó - SP

Nas últimas décadas, com muita luta dos movimentos socioambientais, a pauta da sociobiodiversidade começou a integrar a agenda institucional do governo federal, revelando um amadurecimento importante para o Brasil. Os territórios tradicionais e suas economias ainda estão às margens das políticas públicas, mas começam a ocupar espaços de planejamento estratégico, refletindo a urgência de unir conservação ambiental, justiça social e democracia econômica. Essa “virada de chave” é resultado tanto da mobilização incansável das comunidades e organizações da sociedade civil, como da abertura crescente de canais institucionais que permitem escuta e construção conjunta de políticas.


Entre as ações mais relevantes desse novo cenário está o Plano Nacional de Desenvolvimento da Bioeconomia (PNDBio), coordenado pelo Ministério do Meio Ambiente e Mudança do Clima - MMA, que busca integrar cadeias produtivas sustentáveis ao desenvolvimento nacional. O plano vem sendo elaborado de forma participativa e teve, recentemente, o encerramento da sua consulta pública em 6 de julho de 2025, com previsão da realização do Seminário Nacional da Sociobioeconomia, no próximo mês de agosto. 


Apesar dos avanços e do rico debate promovido nos encontros já realizados, ainda há um caminho significativo a percorrer para que surjam mudanças concretas que atendam às necessidades atuais da sociobiodiversidade. Henrique Kefalás, coordenador executivo do Instituto Linha D'Água, participou em agosto de 2024 da Oficina Regional Sul-Sudeste, em Iperó-SP, e chamou atenção para os desafios persistentes.


“Ainda há uma desconexão entre as políticas públicas existentes e os eixos que o plano pretende trabalhar. Além disso, a proposta dos polos de sociobiodiversidade parece repetir a lógica dos arranjos produtivos locais, apenas repaginando conceitos antigos sem resolver de fato os gargalos que existem desde o lançamento das primeiras políticas. A sensação é de que estamos avançando pouco, sem inovações ou mudanças substanciais que respondam às necessidades atuais", afirmou Henrique.


Outra iniciativa recente do governo foi a criação do Sociobio Mais, programa lançado no início de julho pela Companhia Nacional de Abastecimento (Conab), que visa valorizar a sociobiodiversidade e o extrativismo no Brasil. Ele atua na estruturação das cadeias produtivas, fomentando o acesso dos produtos da sociobiodiversidade a mercados institucionais, como o Programa de Aquisição de Alimentos (PAA) e o Programa Nacional de Alimentação Escolar (PNAE). Além disso, o Sociobio Mais busca fortalecer políticas de garantia de preços mínimos e ampliar a assistência técnica e o crédito para produtores que vivem da sociobiodiversidade, tentando tornar o setor mais competitivo e sustentável.


Essas iniciativas refletem uma mudança de postura das políticas públicas nacionais, que começa a reconhecer que a sociobiodiversidade não é apenas um tema ambiental, mas também econômico, social e estratégico para o futuro do Brasil. Mas ainda há um longo caminho a percorrer. As iniciativas listadas fazem parte de um movimento maior que busca corrigir desigualdades históricas e promover justiça territorial. Contudo, é fundamental que essas políticas não fiquem restritas ao papel: precisam chegar, de forma concreta, às comunidades, garantindo infraestrutura, crédito, tecnologia e apoio institucional para transformar potencial em prosperidade real.


Há, portanto, um horizonte promissor. O Brasil tem na sociobiodiversidade não apenas uma riqueza natural inestimável, mas também um caminho sólido para construir um desenvolvimento verdadeiramente justo, sustentável e inclusivo. É possível sonhar com um país onde o mar, as florestas e os rios sejam fontes de vida, cultura e renda - sem abrir mão da justiça e da dignidade para quem vive nesses territórios. Afinal, a sociobiodiversidade não é apenas a chave para preservar o Brasil; é também a esperança viva de um futuro em que natureza, pessoas e prosperidade caminhem lado a lado.

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